Por Rogério Coelho
Ah, nada como a naturalidade do gangsta de Woody Allen, que ora esbalda a sensibilidade e ideologia, reformula a peça de teatro, ora dispara seus tiros, sem menor estupor, justificando seus “ossos do ofício”, em Bullets over Broadway. Aqui, na periferia do barreiro, são traficantes em disputa por território, não por diferença ideológica, mas por afinidade à ela. Indiferentes à arte de matar, cunham seu espaço que não é medido por ruas, mas por uma contaminação viral de suas bocas e revendas de drogas. Estão em guerra. O que há em suas bocas? "Ceci n'est pas une pipe". Magritte estaria bem feliz, se aplicasse sua semiologia na boca rachada e preta dos noiados daqui. Isso não é um cachimbo, é pobreza. Na arte, na política, no sexo, no ônibus, no “todo dia” travamos uma luta pela diferença de razões. Os guerrilheiros urbanos sem estrela, boinas, ou ditador enrijecem seus ossos no ofício de ser vida loka. Sem tempo pra filosofar.
Hoje ouvi mais tiros. Um círculo de fogo se formou no
entorno de nossa casa. Ainda tive chance de ver um policial descarregar a arma
para parar um veículo suspeito. Eu estava na janela. Balas resvalando no
asfalto, saindo em toda direção. Por um átimo, desejei levar uma, bem na testa.
Bem no dia da independência... Ops, estamos no Independência, e o trocadilho
com a América me fez pensar que eu podia ser condecorado como herói de guerra. Sobrevivo
no bairro Independência há quase 30 anos. E já passei por muitos tiros. Iniciei
bem meu filho que já testemunhou seu primeiro assassinato. Viu da janela um
homem ser esfaqueado em frente de casa. Fiquei todo orgulhoso dele. Testemunha ocular
aos 12 anos, não é pra qualquer um. Nenhum Hitchcock por detrás das venezianas,
mas olhos atentos aprisionados atrás das grades. Nós é que estamos na acoita. E
na realidade não há investigação fustigosa pela morte do qualquerum. Depois já
presenciou também uma tentativa de homicídio. Desta vez, foi o dono do
supermercado. Nessa eu estava. Todo ensangüentado ainda tentava falar ao
celular com a polícia, descrevendo os clientes-meliantes-clientes.
No ócio de meu oficio da escrita para teatro, saio do
computador, e enquanto falo ao celular ouço os tiros mais distantes. Emudeço. “sou
um inimigo do povo”, penso condenando-me por ser ouvinte passivo, conservador,
que se assusta com tiros e não denuncia. Ibsen me tranqüiliza com seu título
homônimo. Isso só quer dizer que sofremos o mundo que nos cerca, e que somos
inimigos por que temos ideais que trombam com a especulação, a corrupção, com o
consumo, com a pauperização da riqueza, e com o enriquecimento da pobreza. Na periferia
de Ibsen minhas idéias são mais claras do que na minha quebrada. Aqui tudo está
em movimento. Não sei de que lado ficar. Deslocam-me os sentidos pois o lugar
da guerra muda muito rapidamente. Na periferia vivemos sem geografia, como no
teatro pós-dramático. A quebra da ação contínua, própria do drama, não nos
deixa agarrados ao fato; à história em si. Não é novela, não dá pra seguir, só
pra ser surpreendido. Tadeusz Kantor me diz que o cenário está ideal para o
imprevisível. Não há objeto artístico aqui também. Janelas, ruas, muros,
corações são modificados pela violência. É a realidade do nível mais baixo. Os tiros
ficam mais altos. Eles começam a chegar mais perto. Minha companheira do teatro
do outro lado da linha me diz pra conversarmos depois, quando lhe dou a notícia.
Como se eu tivesse que me proteger. Do quê? Como? Do meu texto, que tem que
vencer e disparar contra os tiros? Continuamos. Dei um tom de tranqüilidade na
despedida. “A gente se fala amanhã, tchau”. Amanhã.
Aos tiros, minha mãe, liga pros meus irmãos. Estavam bem e
em casa.
Alguns traficantes rivais fizeram, durante o final de
semana, suas trocas; seus jogos de fogo. Três mortos a um, dizem. A pendenga
está desigual. Vai ter noite quente de novo. Um toque de recolher é naturalizado
pelos tiros. Os olhos se avizinham, nas janelas, sacadas, beiras de ruas. Recontam
o que viram, gesticulam atuando, teatralmente o que não se consegue repetir num
palco. Recorto todas as frases e ctrl+v no PC. “ele mandou o carro parar,
assim, e meteu bala...”. Sirenes intermitentes, e agora o helicóptero. Não
podia faltar. Só vem em caso extremo. “A luz tá vindo pro lado de cá, ó”,
alerta minha mãe. “Não sobe na laje, se não eles acham que é suspeito”, avisa
meu pai. A luz. Uma esperança que todos esperam. Quando a luz vem é um sinal. “Agora
ele tá mais baixo, Rogério. Tá bem baixo”, minha mãe tá excitada, entre
ligações e janela, falam sobre a luz. Um círculo de fogo, depois um círculo de
luz. Qualquer introdução dessas poderiam dar num capítulo bíblico. Faltou chover,
para banhar a terra e fazer nascer os homens... mas, eles estão amoitados. Não podem
nascer agora que os Hômi tão de cima.
Os refletores baixam. Iluminam a cena do céu. Um espetáculo com dramaturgia bem
arranjada, coesa, sem ruído. Os conflitos estão todos nas tensões formais da
cena com os expectadores. Eles também são atores, vê-se bem os coringas do Boal
saindo à porta de suas casas. Mostrando-se e assuntando feliz, por ter
participado da cena. Testemunha que nunca vê rosto de bandido, mas que tem sua
história bem resolvida na ponta da língua. Ao menos daquilo que ouviu.
O silêncio demora voltar. Hum, como se ele fosse um
estabelecimento; uma instituição. O silencio na periferia é uma exceção. O ônibus
chia, o funkeiro chama, o filho chora, a mãe chora, o tiro soa, o helicóptero
ilumina. Os sons da cena compõem uma trilha difícil de prever.
É tudo uma criação de algo superior. Sim, essa dramaturgia
só pode ter sido escrita por ele. Se me apetecesse rezar agora, rezaria pra
ele, pedindo que me desse um curso de dramaturgia. Diria: “Que curso sigo agora
na minha escrita?” Emudeço. Paro de escrever. Pergunto-me: depois dos tiros,
quem vai acreditar na minha ação dramática? Que dia serei capaz de atingir tal
grau de composição? Como me aproximar esses nóias
daqui, num Macheath, do
Brecht, e dar a ele o glamour do ser contraditório e fundamental para a
sociedade capitalista que o criou? Não, não conseguirei. Mas, talvez... Talvez,
quando eu não me levantar pra especular a vida a meu redor, e fixar no meu
trabalho... Quando eu não me deixar abalar por um tiroteiozinho, e me
concentrar numa peça de teatro. Sim, e começar a me acostumar. Sim, no dia em
que ouvir tiros na periferia for somente uma cama sonora que irá me inspirar a
escrever, e quando eles não forem “naturais”, ou seja, ao vivo, vou ter vários
temas gravados, de minha própria janela. Assim, quem sabe eu conseguirei falar
sobre as coisas mais belas e desimportantes desse mundo. Falarei sobre flores,
e as aflições dos amores, sem ser complexo; absurdamente superficial; sobre o sofrimento
da alma humana, e da dor não obstante da alegria que dela advém; Da comédia da
vida de casado; da desgraça cômica da pobreza. Talvez eu consiga fazer com que
meu teatro ridicularize espectros sociais como os negros, homossexuais,
mulheres objetais, e consiga dizer que isso tudo é natural. Riam! Talvez meu
teatro sobreviva dando risadas dessas mazelas que eu mesmo criarei. E a reproduzirei
a milhares de espectadores, também acostumados aos tiros, que irão ao teatro
apenas para se divertir. E quem sabe eu dê alguns tiros no palco também um dia,
como forma elevada num improviso de uma de minhas comédias sem limites, e mate
alguém da platéia. Serei agraciado pela crítica: “Uma comédia de matar de rir!”
Talvez eu chegue à Broadway, e dê alguns tiros por lá
também, bem diferentes do meu querido Woody.
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