terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Tiros na Broadway? Não, no Independência!

Por Rogério Coelho

Ah, nada como a naturalidade do gangsta de Woody Allen, que ora esbalda a sensibilidade e ideologia, reformula a peça de teatro, ora dispara seus tiros, sem menor estupor, justificando seus “ossos do ofício”, em Bullets over Broadway.  Aqui, na periferia do barreiro, são traficantes em disputa por território, não por diferença ideológica, mas por afinidade à ela. Indiferentes à arte de matar, cunham seu espaço que não é medido por ruas, mas por uma contaminação viral de suas bocas e revendas de drogas. Estão em guerra.  O que há em suas bocas? "Ceci n'est pas une pipe". Magritte estaria bem feliz, se aplicasse sua semiologia na boca rachada e preta dos noiados daqui. Isso não é um cachimbo, é pobreza. Na arte, na política, no sexo, no ônibus, no “todo dia” travamos uma luta pela diferença de razões. Os guerrilheiros urbanos sem estrela, boinas, ou ditador enrijecem seus ossos no ofício de ser vida loka. Sem tempo pra filosofar.

Hoje ouvi mais tiros. Um círculo de fogo se formou no entorno de nossa casa. Ainda tive chance de ver um policial descarregar a arma para parar um veículo suspeito. Eu estava na janela. Balas resvalando no asfalto, saindo em toda direção. Por um átimo, desejei levar uma, bem na testa. Bem no dia da independência... Ops, estamos no Independência, e o trocadilho com a América me fez pensar que eu podia ser condecorado como herói de guerra. Sobrevivo no bairro Independência há quase 30 anos. E já passei por muitos tiros. Iniciei bem meu filho que já testemunhou seu primeiro assassinato. Viu da janela um homem ser esfaqueado em frente de casa. Fiquei todo orgulhoso dele. Testemunha ocular aos 12 anos, não é pra qualquer um. Nenhum Hitchcock por detrás das venezianas, mas olhos atentos aprisionados atrás das grades. Nós é que estamos na acoita. E na realidade não há investigação fustigosa pela morte do qualquerum.  Depois já presenciou também uma tentativa de homicídio. Desta vez, foi o dono do supermercado. Nessa eu estava. Todo ensangüentado ainda tentava falar ao celular com a polícia, descrevendo os clientes-meliantes-clientes.

No ócio de meu oficio da escrita para teatro, saio do computador, e enquanto falo ao celular ouço os tiros mais distantes. Emudeço. “sou um inimigo do povo”, penso condenando-me por ser ouvinte passivo, conservador, que se assusta com tiros e não denuncia. Ibsen me tranqüiliza com seu título homônimo. Isso só quer dizer que sofremos o mundo que nos cerca, e que somos inimigos por que temos ideais que trombam com a especulação, a corrupção, com o consumo, com a pauperização da riqueza, e com o enriquecimento da pobreza. Na periferia de Ibsen minhas idéias são mais claras do que na minha quebrada. Aqui tudo está em movimento. Não sei de que lado ficar. Deslocam-me os sentidos pois o lugar da guerra muda muito rapidamente. Na periferia vivemos sem geografia, como no teatro pós-dramático. A quebra da ação contínua, própria do drama, não nos deixa agarrados ao fato; à história em si. Não é novela, não dá pra seguir, só pra ser surpreendido. Tadeusz Kantor me diz que o cenário está ideal para o imprevisível. Não há objeto artístico aqui também. Janelas, ruas, muros, corações são modificados pela violência. É a realidade do nível mais baixo. Os tiros ficam mais altos. Eles começam a chegar mais perto. Minha companheira do teatro do outro lado da linha me diz pra conversarmos depois, quando lhe dou a notícia. Como se eu tivesse que me proteger. Do quê? Como? Do meu texto, que tem que vencer e disparar contra os tiros? Continuamos. Dei um tom de tranqüilidade na despedida. “A gente se fala amanhã, tchau”. Amanhã.

Aos tiros, minha mãe, liga pros meus irmãos. Estavam bem e em casa.

Alguns traficantes rivais fizeram, durante o final de semana, suas trocas; seus jogos de fogo. Três mortos a um, dizem. A pendenga está desigual. Vai ter noite quente de novo. Um toque de recolher é naturalizado pelos tiros. Os olhos se avizinham, nas janelas, sacadas, beiras de ruas. Recontam o que viram, gesticulam atuando, teatralmente o que não se consegue repetir num palco. Recorto todas as frases e ctrl+v no PC. “ele mandou o carro parar, assim, e meteu bala...”. Sirenes intermitentes, e agora o helicóptero. Não podia faltar. Só vem em caso extremo. “A luz tá vindo pro lado de cá, ó”, alerta minha mãe. “Não sobe na laje, se não eles acham que é suspeito”, avisa meu pai. A luz. Uma esperança que todos esperam. Quando a luz vem é um sinal. “Agora ele tá mais baixo, Rogério. Tá bem baixo”, minha mãe tá excitada, entre ligações e janela, falam sobre a luz. Um círculo de fogo, depois um círculo de luz. Qualquer introdução dessas poderiam dar num capítulo bíblico. Faltou chover, para banhar a terra e fazer nascer os homens... mas, eles estão amoitados. Não podem nascer agora que os Hômi tão de cima. Os refletores baixam. Iluminam a cena do céu. Um espetáculo com dramaturgia bem arranjada, coesa, sem ruído. Os conflitos estão todos nas tensões formais da cena com os expectadores. Eles também são atores, vê-se bem os coringas do Boal saindo à porta de suas casas. Mostrando-se e assuntando feliz, por ter participado da cena. Testemunha que nunca vê rosto de bandido, mas que tem sua história bem resolvida na ponta da língua. Ao menos daquilo que ouviu.

O silêncio demora voltar. Hum, como se ele fosse um estabelecimento; uma instituição. O silencio na periferia é uma exceção. O ônibus chia, o funkeiro chama, o filho chora, a mãe chora, o tiro soa, o helicóptero ilumina. Os sons da cena compõem uma trilha difícil de prever.

É tudo uma criação de algo superior. Sim, essa dramaturgia só pode ter sido escrita por ele. Se me apetecesse rezar agora, rezaria pra ele, pedindo que me desse um curso de dramaturgia. Diria: “Que curso sigo agora na minha escrita?” Emudeço. Paro de escrever. Pergunto-me: depois dos tiros, quem vai acreditar na minha ação dramática? Que dia serei capaz de atingir tal grau de composição? Como me aproximar esses nóias daqui, num Macheath, do Brecht, e dar a ele o glamour do ser contraditório e fundamental para a sociedade capitalista que o criou? Não, não conseguirei. Mas, talvez... Talvez, quando eu não me levantar pra especular a vida a meu redor, e fixar no meu trabalho... Quando eu não me deixar abalar por um tiroteiozinho, e me concentrar numa peça de teatro. Sim, e começar a me acostumar. Sim, no dia em que ouvir tiros na periferia for somente uma cama sonora que irá me inspirar a escrever, e quando eles não forem “naturais”, ou seja, ao vivo, vou ter vários temas gravados, de minha própria janela. Assim, quem sabe eu conseguirei falar sobre as coisas mais belas e desimportantes desse mundo. Falarei sobre flores, e as aflições dos amores, sem ser complexo; absurdamente superficial; sobre o sofrimento da alma humana, e da dor não obstante da alegria que dela advém; Da comédia da vida de casado; da desgraça cômica da pobreza. Talvez eu consiga fazer com que meu teatro ridicularize espectros sociais como os negros, homossexuais, mulheres objetais, e consiga dizer que isso tudo é natural. Riam! Talvez meu teatro sobreviva dando risadas dessas mazelas que eu mesmo criarei. E a reproduzirei a milhares de espectadores, também acostumados aos tiros, que irão ao teatro apenas para se divertir. E quem sabe eu dê alguns tiros no palco também um dia, como forma elevada num improviso de uma de minhas comédias sem limites, e mate alguém da platéia. Serei agraciado pela crítica: “Uma comédia de matar de rir!”

Talvez eu chegue à Broadway, e dê alguns tiros por lá também, bem diferentes do meu querido Woody.


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